Travamos a emigração ao baixar os impostos?
A descida de impostos tem sido apresentada como solução para travar a emigração dos jovens. No entanto, esta ideia não sobrevive a um confronto sério com a realidade.
Mais de metade dos jovens a trabalhar em Portugal admite emigrar, de acordo com uma sondagem da Aximage. Entre os mais de oitocentos jovens entre os 18 e os 34 anos que responderam ao inquérito, a instabilidade financeira e os problemas no acesso à habitação são os principais motivos de preocupação. Daí que os números da emigração mereçam maior atenção no debate público, sobretudo desde as últimas eleições legislativas.
Entre as primeiras medidas aprovadas pelo atual governo no primeiro ano de mandato, incluem um conjunto de reduções de impostos sobre o rendimento e sobre a compra de casa para os jovens até aos 35 anos, que foi descrito pelo governo como um plano para travar a emigração das gerações mais novas. A ideia subjacente é a de que a fiscalidade é um dos principais fatores que motiva a saída de pessoas – sobretudo jovens – do país.
Há pelo menos dois argumentos relacionados com a fiscalidade: (1) os impostos sobre o trabalho (IRS) são demasiado elevados, o que explica a procura de outros destinos, e (2) o custo por trabalhador para as empresas é excessivo, o que impede o pagamento de melhores salários. No entanto, há bons motivos para pôr em causa esta tese.
Nunca tivemos tanta emigração?
Se olharmos para os números da emigração permanente, percebe-se que houve um aumento expressivo entre 2011 e 2014 – durante o programa de ajustamento da troika, no último governo PSD-CDS. Com a crise em que o país mergulhou e as medidas de austeridade que a acentuaram, o número de pessoas a procurar melhores condições de vida no estrangeiro mais do que duplicou. No caso da emigração jovem, o aumento foi ainda mais pronunciado em alguns grupos etários. Passado esse período, a emigração diminuiu de forma considerável, tanto em termos totais como entre os jovens. Ainda assim, é hoje mais elevada do que em 2008. Ou seja, Portugal não atravessa um pico de emigração, mas o fenómeno merece ser analisado com mais detalhe.
São os impostos que motivam a emigração?
Começando pela carga fiscal – ou seja, a relação entre a receita total de impostos e contribuições para a Segurança Social e o PIB –, os dados do Eurostat mostram que, em 2022, a carga fiscal da economia portuguesa (35,8%) se encontrava bastante abaixo da média da União Europeia (39,9%) e da Zona Euro (40,5%), sendo inferior à da maioria dos destinos da emigração portuguesa – França (45,9%), Bélgica (42,6%), Alemanha (40,5%), Luxemburgo (38%), Países Baixos (38%) e Espanha (37,4%) – e ficando apenas acima da Suíça (26,9%).
Se recorrermos aos dados da OCDE, que não são exatamente iguais mas permitem comparações com os restantes países, o que vemos é que a carga fiscal em Portugal (36,4%) continua a ser inferior à dos países referidos e é quase a mesma que a do Reino Unido (35,3%), sendo superior à dos EUA.
Passando ao nível de tributação sobre o trabalho, a OCDE publica as estatísticas das taxas efetivas sobre o rendimento do trabalho, que incluem o imposto cobrado aos trabalhadores e as contribuições pagas pelos trabalhadores e pelas empresas para a Segurança Social.
Em Portugal, o peso dos impostos e contribuições sobre um salário médio continua a ser inferior a alguns dos principais destinos da nossa emigração (França, Alemanha ou Bélgica) e muito próximo de outros (Luxemburgo e Espanha). Embora este indicador seja superior ao dos Países Baixos, por exemplo, isso não se deve aos impostos: a taxa efetiva de imposto sobre o salário médio é de 17,1% em Portugal e 16,1% nos Países Baixos. A diferença está nas contribuições para a Segurança Social (que não são impostos, mas sim o valor que descontamos para ter direito a pensão de reforma).
O que diferencia verdadeiramente Portugal da maioria dos países para onde os jovens emigram são os salários pagos. O salário médio ajustado em Portugal é bastante inferior à média da União Europeia e, apesar de ser superior ao de vários países do Leste europeu e também ao da Grécia, é significativamente mais baixo do que o de Espanha (país vizinho) e o da generalidade dos países do Norte.
A estrutura salarial em Portugal continua a ser marcada pela prevalência de salários muito baixos. Mais de metade dos trabalhadores por conta de outrem recebe menos de €1000 por mês e essa percentagem é ainda maior no caso dos jovens. Neste cenário, não surpreende que boa parte dos jovens esteja descontente com as perspetivas com que se depara à entrada para o mundo do trabalho e que poucos dos que emigram optem por regressar apesar dos benefícios fiscais que já existem para quem o faz.
Porque persistem os baixos salários?
A economia portuguesa encontra-se estagnada nos últimos 20 anos. A taxa média de crescimento anual não chegou a 1%, um valor manifestamente inferior ao que se registava nas décadas anteriores.
Há dois grandes motivos para a prevalência de remunerações baixas no país: o desempenho desapontante da economia portuguesa e o fosso que tem aumentado entre os salários e a produtividade.
1. Uma economia estagnada
A estrutura salarial está associada às características da economia portuguesa: ao longo das últimas duas décadas, o país especializou-se em serviços de baixo valor acrescentado (primeiro, a construção e o imobiliário; depois, o turismo e a restauração). Esta tendência não é alheia ao processo de integração europeia: com a adesão a uma moeda sobrevalorizada e a concorrência de países com salários bem mais baixos (China e Leste europeu), as indústrias exportadoras em Portugal e nos restantes países do sul da Europa perderam terreno e o mercado favoreceu o investimento em setores com maiores perspetivas de retorno a curto prazo. No entanto, estes são setores tipicamente caracterizados por baixo potencial produtivo e por baixos salários.
Quando olhamos para os fluxos migratórios na União Europeia, é possível identificar um padrão: os países das periferias do Sul e de Leste têm perdido população nos últimos anos, ao passo que os países do Norte têm ganho. O principal destino da migração intra-UE é a Alemanha. O mercado único e, no caso da Zona Euro, a moeda única, ajudam a explicar este processo, como foi explicado pelo nobel da Economia Joseph Stiglitz, no seu livro O Euro – Como uma moeda comum ameaça o futuro da Europa: numa área que assegurou a mobilidade do fator trabalho, mas não a convergência económica entre os países e as suas economias, a tendência é que exista um fluxo de trabalhadores, sobretudo entre os mais qualificados, para as regiões mais desenvolvidas. A perda de jovens qualificados, por sua vez, atrasa o desenvolvimento dos países de origem e acentua a dinâmica de divergência.
2. O fosso entre a produtividade e os salários
O desempenho da economia portuguesa nos últimos vinte anos tem sido desapontante. Poder-se-ia pensar que é suficiente para explicar o fraco crescimento salarial. No entanto, a verdade é que os salários reais nem sequer têm acompanhado a evolução da produtividade.
A evolução dos salários em Portugal foi afetada pela generalização da precariedade no mundo do trabalho. Portugal tornou-se um dos países da União Europeia onde o recurso a contratos a termo é maior, sobretudo entre os jovens, que, quando acabam os estudos, enfrentam frequentemente vários anos de estágios e contratos de curta duração.
Há estudos que demonstram que a precariedade tem um efeito de compressão dos salários. Além disso, um trabalho de investigação de três economistas do FMI aponta para a existência de uma relação entre a desregulação laboral e a redução da wage share – a fração do rendimento produzido numa economia que é recebida pelo fator trabalho, ou, por outras palavras, a fatia do bolo que cabe aos trabalhadores.
O que propõe o governo?
A principal medida aprovada é o alargamento do IRS Jovem, com a redução das taxas marginais para os trabalhadores até aos 35 anos. O problema desta medida não é apenas o facto de ser pouco eficaz para travar a emigração. É que beneficia desproporcionalmente quem recebe mais. Numa economia marcada pela prevalência de salários baixos, mais de metade dos jovens ganha menos de €1000 por mês, o que significa que ganharia muito pouco (ou mesmo nada) com esta medida. Em contraste, a pequena franja dos mais ricos tem muito a ganhar.
Além disso, é difícil sustentar a ideia de que a redução dos impostos vai atrair os jovens que emigraram. Os benefícios fiscais que já existem com o Programa Regressar, criado em 2019, têm como objetivo atrair quem tenha estado fora do país pelo menos 5 anos. No entanto, o sucesso parece ser bastante limitado: terão regressado cerca de 4 mil emigrantes com este benefício, de acordo com um estudo do Ministério das Finanças, o que contrasta com os mais de 235 mil jovens até aos 35 anos que saíram do país desde 2011, segundo os dados do INE. Não é a redução de impostos que vai inverter a tendência de emigração porque não são os impostos que impedem os jovens de construir o seu projeto de vida no país.
Na área da habitação, as medidas do governo também passam pela fiscalidade: mais especificamente, a isenção de IMT e de imposto de selo para compra de habitação própria e permanente por jovens até aos 35 anos. Casas que custem até 316 mil euros ficam totalmente isentas e, para as que custem até 633 mil euros, isenta-se metade do valor. Mais uma vez, estamos a falar de uma medida dirigida a uma parte muito pequena dos jovens: os que já têm ou estão próximos de ter condições para comprar casas aos preços exorbitantes que hoje se enfrentam no mercado.
Essa não é a realidade da maioria dos jovens, que tem dificuldade até para arrendar e dificilmente consegue poupar o suficiente para conseguir financiar a entrada de uma casa. Isso deve-se ao facto de os salários terem crescido muito abaixo dos preços das casas nos últimos anos. O mercado imobiliário encontra-se inflacionado pela intensificação do turismo e pelos fundos imobiliários e não-residentes endinheirados que não procuram casas para viver, mas sim como ativos para especular e gerar mais-valias. O preço pago por compradores com domicílio fiscal no estrangeiro (ou seja, por não-residentes no país) é 43% superior ao dos compradores nacionais. Neste contexto, a redução do IMT não resolve as dificuldades da maioria dos jovens.
O problema não está nos impostos, mas no que proporcionam
Os impostos são o preço que pagamos para viver numa sociedade decente. O problema está, sobretudo, no que (não) proporcionam. Em Portugal, os últimos dez anos têm sido marcados por uma política de sub-investimento sistemático que degrada os serviços públicos, como demonstram os casos da saúde e dos transportes. A quase ausência de oferta pública de habitação a preços acessíveis também reflete o sub-investimento. Não surpreende que Portugal seja um dos países da UE onde os jovens saem mais tarde de casa dos pais.
Nenhum destes problemas de resolve por via dos impostos. A redução de impostos baseia-se numa perspetiva individualista que acaba por beneficiar desproporcionalmente quem já tem mais. Pelo contrário, as receitas do Estado são o que permite financiar o investimento público que tem faltado. Investir no SNS para reduzir os entraves ao acesso e as listas de espera, reforçar os transportes públicos para facilitar a mobilidade (e combater alterações climáticas), ou investir numa rede de creches públicas onde os casais possam deixar os filhos são exemplos de medidas que permitem dar condições para que todos – sejam mais ou menos jovens – possam construir a sua vida em Portugal.
(versão atualizada de um artigo publicado no ano passado na revista Seara Nova)